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Podemos tirar, se achar melhor

*Publicado no Ornitorrinco em 26/03/15

Imaginem que moleza seria se, pra cada gafe, tropeço, incoerência, contradição, injustiça, descuido, vexame, erro, asnice, vacilo, deslize, ilegalidade, corrupção ou desacerto que cometêssemos houvesse a agência britânica de notícias Reuters para tirar nosso erro da história, se achássemos melhor? “Podemos tirar, se achar melhor” é o trending topic do regozijo, o hashtag redentor, nossa máxima reveladora, a nova sugestão para o lugar do “ordem e progresso”, a perfeita tradução do mínimo sentimento de desconfiança de quem tem mais do que merda na cabeça. É como aquele aparelho do filme ‘Homens de Preto’ que, em um flash, apaga a memória de todos que viram ou tomaram conhecimento da presença de alienígenas na terra. Os alienígenas, no caso, são os diversos casos de corrupção que envolvem os tucanos desde os anos 1990, e que permanecem esquecidos nos corredores ideológicos da nossa nada imparcial imprensa nacional. Nós somos a testemunha desmemoriada, atônita após o clarão de luz, sem expressão facial ou capacidade de reação, perdida na ausência de uma das peças do quebra-cabeça, enquanto a imprensa insiste em nos dizer que o puzzle está completo, ainda que o banguela mapa político nacional esteja diante do nosso nariz. No meio da avenida, uma família inteira de ET’s, perfeitamente verdes, com quatro dedos e armas de raio lazer em punho salta de um disco voador que acabou de pousar diante de nós. Na capa do Globo, nada além da nova novela – a velha novela que favorece o próprio jornal.

“Podemos tirar, se achar melhor” é encontrar o namoradinho ou a namoradinha na cama com seu melhor amigo, ou descobrir seu sócio com a boca na botija roubando direto da sua carteira: é possível fingir que nada foi abalado, que a confiança pode ser restaurada, dizer que perdoa, que aceita ou fingir que não viu e esperar a vida voltar a ser a mesma. A verdade, no entanto, é que, especialmente em relações que exigem somente a confiança para continuarem a existir, certas coisas jamais podem ser magoadas. “Mesmo que eu te perdoe, que acredite que você não quis me magoar, eu simplesmente não confio mais em você”. No caso, a namorada traída é a população de leitores otários, e o namoradinho é a maior agência de notícias do mundo, nua sob os lençóis de FH.

“Podemos tirar, se achar melhor” é o anti Watergate. É a antítese da entrevista do jornalista britânico David Frost com o ex-presidente norte-americano Richard Nixon, na qual Frost conseguiu extrair do único presidente dos EUA a renunciar do cargo que, para ele, quando um presidente faz algo ilegal, então não é ilegal. Nem precisamos ir tão longe, é o anti Operação Lava-Jato naquilo que ela tem de mais genuinamente vitorioso: a denúncia, investigação e eventual prisão de políticos envolvidos com corrupção. É a reedição do Escândalo da Parabólica, em 1994, quando o então ministro da Fazenda Rubens Ricupero, um dos pais do Plano Real, sem saber que sua fala estava sendo transmitida num vazamento do sinal do satélite, vaticinou um lema nacional, “Eu não tenho escrúpulos. Eu acho que é isso mesmo, o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”, disse Ricupero. O ex ministro se aposentou como diplomata e hoje é presidente de um instituto de pesquisas e debates sobre problemas institucionais como educação, segurança, política econômica e desenvolvimento.

“Podemos tirar, se achar melhor” é o lado somente cego da justiça. É uma balança que já vem com uma tonelada de chumbo em um dos lados, mas que se diz perfeitamente regulada. É a defesa da meritocracia que não se importa em partir de princípios desiguais. É a Anistia ampla, geral e irrestrita que não leva em consideração o fato de que um dos lados anistiados já foi preso, condenado, torturado e eventualmente morto – ou que finge que o crime cometido por uma ou mais pessoas possui o mesmo peso de um crime cometido pelo estado. É o sucesso absoluto de uma canção conquistado com o alto custo de milhões de dinheiros em jabá. É a campanha que responsabiliza o consumo cotidiano de água pela resolução da crise hídrica, sem mencionar o fato de que esse consumo representa somente 4% do problema, enquanto o agronegócio morde 70% da água do país – responsabilizando o indivíduo sem reconhecer os processos muito mais perversos conduzidos pelo poder público. É a capa da Veja gritando louros para o sucesso de Eduardo Cunha, sem uma palavra sequer sobre seu nome na lista do Janot. É a dor da verdade evidente, do óbvio escancarado, da confirmação daquilo que nos dói admitir, mas que está em nossa cara. Fica, aliás, a sugestão da frase como novo slogan da agência e dos jornais brasileiros: Reuters – podemos tirar, se achar melhor.

Apesar do potencial publicitário e do charme cativante, “Podemos tirar, se achar melhor” não será a frase musa do verão. Provavelmente não se transformará em slogan instantâneo, não estampará camisetas de grife nem campanhas de cerveja, não entrará para os anais da história nem se tornará jargão generalista para indicar todo e qualquer caso de omissão ou conivência jornalística – afinal, quem escreve a história? "Podemos tirar, se achar melhor" provavelmente não estampará sequer um canto de página nos principais jornais nem será recitada pela voz aveludada dos apresentadores de telejornais. A internet aparentemente é o único antídoto minimamente eficiente para esse enorme aparelho amnésico chamado grande mídia. Dos memes aos blogs, passando pelos nada meros post pessoais que denunciam tais incongruências, a internet, desde junho de 2013 com a mídia ninja e seus diversos afluentes, parece enfim ter ganhado algum sentido mais profundo. Mas, não nos enganemos, mesmo esse sentido eles podem dar um jeito de tirar, se descobrirem como – pois achar melhor tirar eu tenho certeza que eles acham.

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