Carta de amor número 2
*Publicado no Ornitorrinco em 23/10/13
Se houvesse uma arqueologia do amor, é certo que a história revelada por debaixo dos escombros de nossas emoções ancestrais não seria de toda bonita. Ainda que possamos citar gloriosas exceções, não é difícil supor que, desde sempre, seja essencial no ser humano a capacidade de transformar o sentimento que elegemos como o que de melhor podemos sentir, em sofrimento e angústia.
Dizem que comemos muito por medo de morrer de fome, transamos muito com medo de não deixarmos herdeiros e amamos muito por medo de ficarmos sozinhos. O medo é quase sempre mais forte que a confiança e, por isso, muitas vezes acabamos testando o amor até que ele se estrague, nossos temores se tornem verdadeiros e, ao confirmarmos a pior hipótese – ainda que esta tenha sido inventada, e a confirmação, forjada por nós mesmos – alguma coisa passe então a fazer sentido. Forçamos o amor a se tornar um problema, para que assim, nossas paranóias se tornem verdadeiras, e as coisas pareçam controláveis. O outro lado da moeda do amor parece sempre ser o medo. O próprio valor do amor – seja pelo prazer que nos proporciona, pelo sentido que oferece para a vida, ou mesmo por esse mero medo da solidão – faz com que a ideia de perde-lo nos deixe cegos.
Assim, a rejeição amorosa se mostra o único sentimento verdadeiramente absoluto. Mais do que o próprio amor, a rejeição se impõe de tal forma que, no momento em que se ouve o “não” definitivo – ou aquela frase específica que explicita o incontornável – nada mais passa a restar da palheta de emoções que costuma nos tingir. Em um instante, deixa de haver o interesse pelo trabalho, a saudade daquele amigo que não se vê há tempos, a vontade de fazer aquela viagem no fim do ano, a indignação com o governo autoritário ou mesmo o tesão velado pela paquera ocasional. Pelo tempo que durar o luto, você se torna esse sentimento, e nada mais. É uma imposição corpórea: a vitória das vísceras sobre a razão. Há momentos em que de fato seu cérebro parece funcionar em modo de segurança, exercendo as capacidades funcionais básicas, mas deixando de ser, por instantes, dias, semanas, o senhor da máquina que somos nós. Passamos a funcionar sob o regime autoritário e monotemático do coração partido, general dos mais severos e sanguinários.
Algumas convicções costumam se impor de forma dilacerante no durante das rejeições: a certeza de que não seremos capazes de convencer o outro, através de ideias, explicações, questionamentos ou pedidos – de que não há nada mais que possamos fazer. E, com isso, a terrível sensação de que nutrir qualquer esperança, mesmo que ainda existam motivos pra isso, se torna a pior coisa a se fazer. A esperança se transforma em má notícia. Quase nada me soa tão violento quanto a noção de que se deve apagar alguém que se ama. Se é amor, ele deixa de existir, mesmo que se transforme, e nunca retorne a condição de um amor em exercício?
O mais duro é que a rejeição pode ocorrer por que simplesmente uma das partes não quer mais. Esse é um direito incontornável do ser humano, e dos mais difíceis de se lutar contra, pois não exige explicação ou sentido. A pessoa tem o direito de não mais querer, e ponto. Sim, o rejeitado também possui a opção de se sentir traído e destratado – e muitas vezes terá razão – mas isso não muda em nada o direito do outro de ir embora.
No entanto, a rejeição pode se dar também por conta de algum crime emocional inafiançável, cometido pelo rejeitado. Nesse caso, passa-se a contar somente com a hipótese do perdão. É claro que essa variável depende imensamente de qual foi a natureza do delito, e de que forma o réu se comportou durante todo o processo. No entanto, no amor tudo é passível de relativização. Se afastar dessa premissa e se tornar rígido é esquecer a máxima milenar sobre o bambu contra o vento, que se dobra e dança para todos os lados ao ritmo das rajadas, e por isso jamais se quebra. O perdão há de ser das maiores virtudes do amor profundo. A vingança é um prato que se come burro.
O problema da rigidez é que ela quase sempre fomenta mais rigidez. Essa equação cobra dos envolvidos que não voltem atrás, não se arrependam ou tentem fazer diferente, para não parecerem levianos, inconstantes ou maquiavélicos. Com isso, voltamos à fábula do bambu: a rigidez costuma nos quebrar. Quais são as chances de alguém que foi severamente punido tornar a ser amigo ou mesmo amante de seu carrasco?
Ou talvez esteja falando sim de permitir que suas crenças mais profundas se diluam um pouco, a fim de que não reste muito mais do que ética, afeto e verdadeira preocupação com o bem estar dos envolvidos. Perder ao menos parte de nossa “personalidade”, quem diria, para que possamos finalmente responder sem titubear a já manjada fundamental pergunta cunhada por Ferreira Gullar: você prefere ter razão ou ser feliz?
E há a máxima dita por Nietzsche – ou Deleuze, ou Marx, ou Caetano, ou Chico, Anysio, Buarque, Bento, não sei – de que devemos nos juntar a quem temos vontade de conversar pra sempre. Ou seja, o óbvio: ser feliz não se trata de tarefa simples, pois, ao mesmo tempo, tudo isso há de ser fluido, feito fosse acaso – e é, tanto quanto nada é.
Foi Mark Twain quem arrematou que o erro de deus foi não perceber que onde quer que Eva estivesse, lá seria o paraíso para Adão. A questão não era perder a morada divina – queriam simplesmente estar perto um do outro. Após a expulsão, Adão e Eva se viram diante de um dilema: tomar o mundo, ou se aboletarem em uma caverna, a fim de procriarem, manterem-se vivos e serem felizes para sempre? Escolheram a caverna. Tiveram filhos, mas não se pode dizer que criaram uma família feliz e funcional, visto que, por ciúmes, um dos herdeiros, Caim, matou Abel, seu irmão.
Sabemos que nada disso aconteceu e nem deus existe, mas é curioso que seja essa a nossa mitologia original. Um casal, mal visto desde o início pelo grande pai – que é pai de ambos, em uma estranha espécie de incesto – pressionado pelas expectativas, criando crianças problemáticas, terminando por privar a humanidade de sua perfeição infinita. Tudo isso por uma trepada. Quase um roteiro do Woody Allen.
Não carrego nenhuma crítica especial ao casamento, pelo contrário. Sou bastante afeito a me juntar com outra moça e viver uma história de amor. O que me angustia, no caso, é a sensação de que não é permitido nem mesmo por deus que sejamos felizes simplesmente. A felicidade parece proibida. É o maior dos pecados, costumeiramente transformado em sinal de que algo ruim surgirá no horizonte. Por ideias tão abstratas quanto a hipótese de perdermos nosso passaporte para o paraíso, abandonamos com a convicção de um homem bomba conquistas caras e raras da vida real, e nos resignamos à sobrevivência, feito alguém que se tranca no banheiro para se proteger das infinitas hipóteses de dor que a rua pode nos oferecer.
Quem já teve de fazer fisioterapia para recuperar algum movimento sabe que o que o tratamento fisioterápico faz é, em parte, reeducar o cérebro e o corpo de que são capazes a voltar a fazer o que sempre souberam. O que o cérebro quer, essencialmente, é nos manter vivos. Se, pra isso, tivermos de perder o movimento do membro, que seja; para ele, a tarefa estará cumprida. Sabemos que podemos voltar a esticar o braço – o médico nos garante que não há impedimento neurológico ou ósseo – e, no entanto, apesar da consciência, é preciso reeducar os músculos e superar o limite incutido. Basta um único tombo para o corpo esquecer como se faz o que sempre fez, e quase se deixar definir pelo medo. O mesmo vale pro amor.
O que nós pensamos não é necessariamente em coisa alguma uma tradução verdadeira e confiável do que sentimos, nem muito menos do que vivemos. As questões da razão costumam ser bem mais refinadas do que simplesmente nos mantermos fisiologicamente a salvos. Por isso, o que a razão aponta como solução é muitas vezes a mera manutenção de um medo, sem que isso nos permita responder com convicção à pergunta do Gullar: quero ser feliz. Para o mundo não há cura, só há a escolha de se estimular a saúde, que é muito mais rara e improvável do que a doença.
Mas a cabeça não tem limites. Pode ansiar por qualquer coisa – e, assim, inventar delírios onde a vida é só real e de viés, e querer cegamente nos proteger de medos que ela mesma inventou. A cabeça coordena uma máquina que trabalha para nos defender. No entanto, a coragem – algo essencial para a experiência do amor – é justamente o impulso de testar os limites dessa defesa. Não à toa, admiramos tanto quem reconhecemos como corajoso; alguém que consegue, mais do que nós, se libertar dessa prisão, e nos expor o que é de fato limite e o que é pura invenção. Hora tudo dá errado e não há saída, horas as coisas parecem certas, sem que nada tenha mudado de lugar – a não ser a fúria de nossas retinas. A vida é de fato curta para ser pequena – obrigado, Chacal – e nada pode ser mais triste do que perceber essa mudança quando já é tarde demais.
Assim como a razão, o amor não é uma verdade natural. Por mais que se utilize de tantas variáveis que acabe se parecendo com algo como o destino, o amor é sempre uma decisão, tomada entre o esforço pela coragem, a necessidade de se manter vivo e a capacidade minuciosa de driblar e reeducar nossos medos, e convencermos a nos mesmos de que as coisas podem ser diferentes – e que o membro pode voltar a funcionar, apesar do trauma. O amor nunca é puro, limpo, e sempre exige de nós a dedicação de se vencer, centímetro a centímetro, nossos limites, aparentemente tão naturais quanto a flexão e a extensão de um músculo.