Carta de amor número 1
*Publicado no Ornitorrinco em 24/09/13
A graça de se tentar definir qualquer coisa sobre o amor é saber desde o início que se trata de um esforço vão. A tarefa de dar contorno a um mínimo que seja disso que sentimos como o amor, serve mais para acalmar e forjar alguma lógica às intempéries de dois corações em fúria — ou de um só coração que escreve — do que para propriamente se chegar a qualquer conclusão satisfatória.
Carlos Drummond de Andrade, no poema "O Santo Nome", atentou para que não se facilite com a palavra amor. Não se inebrie com seu engalanado som. Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro, nos garante o poeta). Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra, que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra. O poema se encerra em um decreto: não a pronuncie.
No entanto, continuamos a pronunciando com displicência, como se seu significado e tudo que ele nos provoca fosse um meio, um caminho para se chegar a outra coisa, e não um fim — raro, caro poeta, um fim raríssimo. Por mais que tentemos controlar seus efeitos, o fato é que o amor é algo que se sucede fora da lógica, e que, mais do que ter sentido ou razão própria, o amor não tem qualquer compromisso com sentido ou razão — problemas da linguagem, e não do coração. Vale atentar para o fato de que Drummond ataca a palavra, e não a experiência do amor. A palavra amor, para além de qualquer outra, não é só uma palavra.
Bob Dylan, sobre sua relação tempestuosa e infinita com Joan Baez, explicou que é impossível amar e ser inteligente ao mesmo tempo. Com a irresponsabilidade precisa de um poeta, o bardo judeu romântico de Minnesota tem razão — olha ela ai. A inteligência a que Dylan se refere é uma força da lógica, organizada e consecutiva, tão oposta à anarquia essencial do amor — como esperar que um arquiteto genial saiba chutar uma bola no ângulo, ou um cirurgião plástico brilhante seja capaz de derramar versos como os de Drummond. Se nem as canções e poemas são capazes de transformar as emoções, a inteligência formal vale ainda menos diante de tais dilemas.
Mas há sim mais o que fazer do que simplesmente deixar seu coração à deriva. A psicanálise e a filosofia servem ao menos para nos mostrar que somos nós quem inventamos cada passo, cada tragédia e cada alegria. Na maioria das vezes nos sentimos assim, mas a verdade é que não somos prisioneiros de nossos vícios emocionais. Com isso, podemos inventar novas maneiras, ou ao menos maneiras mais leves e menos óbvias, de se viver nossas paixões — sejam elas sexuais ou não. A única outra certeza que possuímos, além da morte, é o fato de que tudo nessa vida se transforma. Sendo assim, porque não usar essa verdade ao nosso favor — para lembrarmos de que é possível reinventar qualquer coisa?
O amor não pode ser um projeto, com definições prévias e rígidas, cálculos técnicos e resultados precisamente aguardados. Com o passar dos anos e das histórias, creio cada vez mais que a inteligência do amor reside em oferecer espaço para os erros — não no sentido de que estes sejam os senhores da relação, pelo contrário: trata-se de oferecer espaço e tempo para a manobra; para que possamos contornar as coisas, sem que a moeda de troca seja sempre o abandono, o rancor, a obviedade de um fim em mágoas. É claro que tal espaço exige confiança e nos provoca insegurança e dúvida, mas o que na vida não é assim? A diferença há de ser que o amor é justamente um fim raro, difícil de se construir, mas que nos traz recompensas igualmente raras e valiosas, e que, por isso, merece tempo e calma para eventuais tropeços.
O amor perfeito, repleto de certezas, definindo toda a vida por vir em um primeiro olhar, nunca aconteceu. A não ser em Verona, no século XVI, e somente como invenção de outro bardo. Creio, no entanto, que o desejo de Shakespeare não era de criar um paradigma ideal do que deveria ser o amor. Ao contrário, me parece uma mensagem muito mais forte em Romeu e Julieta — e que costuma ser diluída ou esquecida pelo nosso inconsciente — o olhar crítico de que ambos os personagens são adolescentes, quase crianças, inventando convicções tão absolutas que terminam mortos, tendo vivido somente uma noite juntos. Porque Julieta não simplesmente fugiu com Romeu — quando do decreto do exílio do rapaz, após ter matado Teobaldo — enfrentando o pai opressor, é pra mim um mistério só respondido pela lembrança de que se trata de uma menina, cheia de coragem em sua imaginação, mas ainda absolutamente medrosa para viver de fato o que a vida oferece, com suas complicações, curvas e incertezas.
Se, para além dos decretos — dizer “eu te amo”, confirmar que a relação vivida é um “namoro”, ou um “casamento”, e que durará para a vida toda — tudo que você oferece como repertório para contornar eventuais dilemas são ameaças de abandono, isso é exatamente o oposto do que chamo de amor. O que dizemos ou decretamos não pode jamais ser mais importante do que o que de fato se está vivendo. Amar é um gesto, e não uma frase. É algo que precisa ser manufaturado, olhado de frente, independentemente do que preferimos afirmar.
Longe dos delírios e paranóias que a idealização do amor nos traz, a vida real oferece sabores complexos e profundos — agridoces, mas verdadeiros e, por isso, deliciosos — que fazem valer o esforço de se permitir o questionamento, as imperfeições e dificuldades de corações diferentes que se encontram — o tal espaço pra manobra. Amar sob decretos, regras intransponíveis, batendo contra o coração com o martelo inclemente de um juiz, é temperar com sal a melhor sobremesa. Por maior que seja o esforço em preservar nossos bibelôs emocionais, o amor é um cão dálmata saltando e abanando o rabo em uma loja de cristais. Podemos tentar prever as hipóteses e nos defender do que pensamos que pode nos ferir, mas a vida jamais é prévia — e as sentimentalidades se impõem necessariamente de maneiras diferentes. O amor precisa ser novo. Sempre.