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BOCA ABERTA 

(Ed. Confraria do Vento/2007)

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à noite as máquinas choram

 

ou mesmo de dia

quando ninguém olha

 

derramam suas sentimentalidades

por entre os vãos dos ferros

fios botões telas placas chips

lágrimas vazam das máquinas

 

quiçá um suspiro há de ser ouvido

finalmente agora podem

não precisam mais ser calculistas afinal

aliviadas

à noite as máquinas choram

enquanto bichos

maquinam

 

pouco me importa

se o rastro azul que deixo

enquanto sonho

não pode ser visto

pouco me importa

se uma exata metade do mundo

me desconhece

(e a outra metade sou eu)

 

não é pouco

o levante uníssono de toda manhã

o acordo que selamos com selinhos

o manifesto velado

que levamos às últimas consequências

pelo qual entregamos nossas vidas

todos os dias

enquanto fingimos ser somente os coadjuvantes dessa ópera preta

não é pouco

 

nem são poucos

os olhos nas caras

os corações nas cavas

as escadas nas casas

 

e pouco me importa

o silêncio dos mastros

e o vento na curva

de um lugar que é sempre lá

 

já que toda beleza

só vem dos que acreditam nela

 

como se mais letal do que a bala

fosse a pedra

 

mais precisa do que a ordem

a gargalhada

 

mais alto do que o grito

fosse esse som

 

como se mesmo sem revolta alguma

já soubéssemos

que as vitrines são feitas de estilhaços

 

que os casamentos

os manuais de instrução

a assinatura no talão

os livros mais vendidos

os desejos impedidos

serão

a vitória traduzida em abraços

 

e que

mesmo sem pau nem pedra

sem estilingues nem tanques

sem yankees go home

sem o morro descer

sem morrer pela causa

sem nem saber o que quero ser

o tempo é novo

e ainda assim

não é pouco

meu amor

escreva a palavra TEMPO num papel

dobre-o

e ponha no bolso

 

pronto

 

o resto da vida

é se desdobrar

que mais faço eu

senão desejar

o oposto do breu?

 

se meu ofício é o mais fácil

te ensino minha meta em um passo:

o que ninguém faz

eu desfaço

 

a cidade em que vivo

se mistura com florestas

que florestas desconhecem

 

abro o elevador

e me atiro em rio largo que por ali escorre

descendo na goela do edifício

 

marco minha pegada

no barro movediço dos asfaltos

contribuo com a solidão amazônica em um assalto

e salvo meu coração dividido

das quinas e placas que no campo me alcançam

 

se, ao pisar no chão seco e cinza da floresta

uma lâmpada se acender no alto

no poste bruto donde floresta brota

(ao nascer do sol duro de meus olhos)

estarei

em

casa

 

 

cérebro no peito

coração na cabeça

 

sob o sol de um livro

tracei dois fantasmas

iluminei os fotogramas da vida real


e me apaixonei pelas palavras

 

relances, romantismos, Roma antiga


cérebro no peito

coração na cabeça


fazer caber todo o mundo

no quarto e sala que sou eu

sozinho, na confusão dos fotogramas da vida real


e em um segundo de trilha

todos os instrumentos

cérebro no pé coração na cabeleira

 

pensar e pernoitar nas idéias


te ver por acaso e, de repente, tudo certo

tudo cem por cento na cena


cérebro no copo


coração no cinema

largar mão das páginas

e se derramar pra fora dos fotogramas da vida real

fazer sair todo o mundo

do continente da minha ilha


e te servir a sobremesa


cérebro nos ombros

coração beleza

 

apoiar um livro na cabeça


amarrar um em cada pé

um em cada mão


ou atirar pela janela

as palavras dos fotogramas da vida real?

transformar em filme mudo

um feeling de final feliz


olhar, suspirar, deixar


o paladar se transformar em roteiro


o cheiro ser o juiz


cérebro na boca


coração nos quadris

 

se atirar

no mundo dos fotogramas da vida melhor


e esperar acontecer deu te encontrar


e que qualquer primeira página

seja um romance enorme e maravilhoso

e que tudo aconteça então


cérebro ao vento


coração na mão

 

 

querida

eu acho que

olá

que tal um

prazer, meu nome é

te amo

saudades de

café

Vitor

você

 

peguei no ar

Chet Baker no colo

num solo estelar

antes de se estatelar

 

não vejo mais reta

nem ângulo na sombra

tudo é círculo

as coisas são redondas

 

o começo é redondo

e mesmo que o meio seja outro

o final é um ponto

 

pois pode olhar lá fora

o agora é uma bola

 

um círculo perfeito

como no fundo é o que trazemos no peito

mesmo que ele martele

vinte e quatro horas

quadrado

quadrado

quadrado

 

o pecado rotundo

que nos espera

também é uma esfera

 

da maravilha

à navalha

só o dobro do raio de si

 

dizendo sim

não há mais quina

nem lugares marcados

só encontros pelo acaso

todo mundo é conhecido

 

e os dados nunca param

 

 

achei

atrás do piano

ainda piando

algum eu te amo

no vinil da vida

 

 

choro agora imaginando o nascimento de minha filha

que se chamaria Júlia

eu, no seu primeiro instante de vida

colocando-a para escutar a canção que tem seu nome

mas choro não pela ideia de tal momento

choro de saudade desse exato instante que passou

eu, imaginando o nascimento de minha filha

que se chamaria Júlia

 

 

sempre que vou à casa de um amigo

abro lá um livro que já li

na esperança de que este seja diferente

 

como posso crer

que o Cortázar do Botika

o Macunaíma do Guilherme

o Poema Sujo do Pedrinho

o Capote do meu pai

sejam iguais aos meus?

 

ou mesmo quando vou à casa de desconhecidos

(mas, nesse caso, muitas vezes fico tímido para

conferir os livros)

 

 

se você com toda força

acreditar

qualquer coisa pode se tornar

mentira

 

 

*Livro lançado em 2007 pela editora Confraria do Vento. Capa: Tatiana Bond

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